Como o objetivo deste blog é difundir a cultura de forma latente, resolvo compartilhar neste espaço o artigo do camarada Tião Rocha (foto), até porque a palavra “cultura” tem sido objeto de usos, os mais variados e imprecisos, gerando compreensões equivocadas e, portanto, desgastando tanto a palavra quanto o seu significado. Em seguida, partindo de “indicadores sociais”, presentes em qualquer grupo social, elabora-se um novo conceito de cultura, de forma prática, perceptível e operacional, constituindo-se na matéria-prima fundamental para formulação de plataformas de Transformação Social e Construção de Cidades Sustentáveis.
Todo e qualquer ser humano tem cultura. Esta é uma das poucas “verdades absolutas” da Antropologia. Apesar da afirmação parecer óbvia, não é, pois muita gente ainda pensa que alguns seres humanos não têm cultura. Outros acreditam que só eles a possuem. Uma minoria, mas de grande poder financeiro e social, crê, firmemente, que sua cultura é superior a dos outros. Por isso, eles se julgam melhores e superiores. Talvez, devido à essa ideia que se pretende dominante, uma grande maioria acostumou-se, ou foi acostumada, a pensar que não tem cultura alguma.
Um dos maiores pecados cometidos pela mesma Antropologia foi fazer as pessoas acreditarem, por muito tempo, que havia homens superiores a outros, pelo simples fato de nascerem em lugares diferentes ou viverem de maneiras diferentes. Aí o conceito de cultura passou a ser a justificativa “científica” da imposição do modelo branco, capitalista, cristão e europeu como “superior” a todos os demais. Aquele desenho ilustrativo da teoria evolutiva da espécie humana, segundo Charles Darwin, presente em todos os livros de ciências, história ou geografia usados pelos estudantes em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, é uma demonstração da presença ainda dos valores evolucionistas, do símio antropóide ao homem branco, final da linha evolutiva².
E, se observamos bem aquele desenho, observamos que a dita espécie humana “evolui” (sic) do negro para o branco. Está aí, “explicada” e “justificada” pela mesma Antropologia da maldita permanência, até hoje, de todas as formas de preconceito e racismo contra as populações negras.
Outro equívoco que rodeia a ideia de cultura e que, infelizmente, a Antropologia não ajuda resolver, é quanto ao uso variado e de pouca utilidade que se faz do conceito de cultura (parece “Bombril”, tem mil e uma utilidades, diz a propaganda³ ).
As instituições educacionais, em geral, são mestres em desqualificar suas próprias definições. Pensam cultura como algo grande, amplo, abrangente e universalizador e a praticam de forma pequena, residual, excludente e corporativa4.
Decorrente do uso indiscriminado ou interesseiro da palavra cultura, ela foi perdendo sua substância e significado, tornando-se uma expressão esvaziada5.
É muito comum se ouvir “este é um problema cultural”, quando alguém quer se referir a algo que não sabe bem o que seja ou quando é uma questão de difícil solução, ou quando não se quer dizer nada.
Por todas essas razões, fica claro que a verdade antropológica – “todo e qualquer ser humano tem cultura” – aparentemente óbvia, não é? Desta forma, as questões culturais dentro de uma escola, comunidade ou cidade, tanto servem para indicar um “problema” ou “justificar” a não aprendizagem dos alunos ou a falta de participação das pessoas na associação de bairro, ou a não presença do setor cultural no planejamento das políticas públicas municipais, estaduais e nacionais e, muito menos em outras agendas internacionais.
Foi essa fluidez conceitual que nos obrigou, enquanto profissionais que trabalhamos com educação, cultura e desenvolvimento sustentado e tentam fazer dela instrumento de sua ação pedagógica, institucional e estratégica, a limpar a palavra de suas impurezas ideológicas, (tais como “superioridade cultural”, ou “cultura = erudição”, etc.) e, em contrapartida, construir um novo conceito que fosse ao mesmo tempo, operacional, mensurável, observável e cientificamente correto.
Para iniciar esta construção fomos buscar outra contribuição na Antropologia e da qual ela pode-se orgulhar: em toda e qualquer comunidade humana (e não é presunção, é em toda mesmo!) existem e interagem diversos componentes substantivos (que nós denominamos “indicadores sociais”) que podem ser identificados, medidos e observados e que, ao interagir entre si, constroem desenhos ou o padrões culturais dos grupos humanos que aí vivem.
São sete (7) estes indicadores e eles são o ponto de partida para a construção do nosso modelo. Podemos encontrá-los tanto entre os grupos ágrafos quanto entre os povos ditos “civilizados”6. Tanto entre as tribos haussás da África, quanto entre os índios Kreenakarore do Brasil. Podemos encontrá-los também em qualquer outra comunidade, rica ou pobre, urbana ou rural, seja do Vale do Jequitinhonha ou do Maranhão, seja de São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Londres ou de Pequim.
Qualquer um dos sete (7) indicadores sociais pode ser (e é) objeto de análise e estudo independente de qualquer outro; no entanto ele só se torna um indicador cultural quando estabelece contato com outros indicadores de forma dinâmica, produzindo um desenho, uma teia de relações, tramas e padrões de convivência, gerando valores ou sendo influenciado pelos valores universais presentes nesta comunidade.
A próxima etapa da nossa tarefa seria como perceber a presença deste desenho no dia-a-dia de nosso trabalho, na rotina da vida de uma comunidade e de uma cidade. A perspectiva desenvolvida por Gilbert Ryle deu-nos a orientação metodológica de que necessitávamos7.
O paralelo “cultura – piscadela” pode ser assim explicado: todas as pessoas piscam os olhos. Fazem isso inconsciente e naturalmente. Ninguém se dá conta que pisca, muito ou pouco. (Aliás, cremos nós, pode ser sinal de maluquice completa encontrar alguém que conte quantas piscadelas deu durante um dia, por exemplo). Assim como todos nós piscamos, mas não pensamos nisso, com a nossa cultura também é assim. Todos a vivem sem se dar conta que seja ou não cultura. Ela se produz socialmente, mas acontece, naturalmente. Flui, semelhante às piscadelas.
A cultura é algo humano, social, público, visível, perceptível, notório, mas microscópico. Nela estão presentes os saberes, os fazeres e os quereres necessários para nossa formação humana e cidadã. Ela é a matéria-prima de toda nossa educação e a plataforma de uma sociedade sustentável.
Se, todavia, há piscadelas e “piscadelas” (algumas são macroscópicas, como o olhar de uma criança que não fez o dever de casa diante de sua professora, ou aquela, fatal, que um homem lança em direção de uma mulher (ou vice-versa) carregada de intencionalidade e desejo, o que pode gerar aproximação, se houver outra piscadela igual como resposta, ou um “pé de briga” entre casais enciumados, por exemplo.
Em relação à cultura, podemos dentro de uma macro-trama, perceber micro-desenhos simbólicos e repletos de significantes, como nas brincadeiras de rodas infantis, nas festas populares e de rua ou nos “rituais da ordem” 8 que simbolizam e mantém o nosso sistema político.
E é neste mar de “piscadelas”, micro e macroscópicas (simbólicas, ritualistas, intencionais, coerentes ou não, etc.) que navegamos (aprendemos, construímos, interpretamos, etc.) durante nossa vida. O verdadeiro educador é aquele que aprende ler estas “piscadelas” e as transforma em aprendizagens permanentes. Da mesma forma, o melhor gestor ou planificador de desenvolvimento sustentado será aquele que conseguir ler e diferenciar “piscadelas de piscadelas”.
Se estamos de acordo com esta abordagem, pensamos que o maior desafio, tanto para os educadores ou para quem pensa (e planeja) a construção de sociedades sustentáveis é diferenciar piscadelas de piscadelas. “Cultura” e culturas.
A seguir fazemos alguns comentários sobre cada um dos indicadores sociais presentes em qualquer grupo social:
1) As formas organizativas: referem-se aos laços de parentesco, às diversas instituições permanentes, temporárias ou ocasionais de convivência, aos grupos de interesse tais como o compadrio, as turmas, as “galeras”, etc.
Neste rol podemos listar uma infinidade delas: a família, a vizinhança, os amigos, a turma do chope, o grupo de oração, os companheiros de futebol, o pessoal do pagode, as comadres da esquina, os meninos da pelada, os jogadores de truco, as meninas das brincadeiras de boneca, etc.
Este indicador tem sido um importante instrumento de observação e pesquisa dos processos e ritmos de desenvolvimento sustentado, local ou regional.
Ele é uma peça fundamental na construção do moderno conceito de “capital social”9.
A nossa experiência pessoal e institucional, nesta área, também nos autoriza afirmar que naquelas localidades onde não há oferta de formas de convivência comunitária em quantidade e qualidade, poucas oportunidades de participação e de protagonismo são geradas, o tempo de resposta aos problemas é muito lento. O tempo de rotinas aumenta e o tempo de desejos e desafios decresce. O imobilismo social se acentua enormemente (“Quando surge um crepúsculo avermelhado, os besouros pensam que é incêndio”, segundo o poeta Manoel de Barros). E esta lentidão de respostas é observada na falta de vontade e ambição das pessoas, principalmente dos jovens, na baixa estima social da coletividade, no comodismo e atraso em relação a outras comunidades.
O auto desprezo (que é o oposto da auto estima) é uma região de carência de qualquer capital social. Um lugar onde não se aprende e nem se ensina. Lugar onde a cidadania não existe. Tirar as pessoas deste limbo, onde a “melancolia social” impera, significa inventar tantas formas diferentes e inovadoras de capital social quanto forem necessárias.
Somente comunidades com alguma auto estima produzem transformação social e, portanto, conseguem construir sociedades sustentáveis.
Fazer leituras densas e diversificadas dos tempos e ritmos de vida, desenhos particulares, traços e formas coletivas, organizativas de uma dada sociedade é o melhor caminho para a construção de pontes e atalhos, caminhos de superação, da sub-cidadania para uma sociedade sustentável.
Investir no lado luminoso de uma comunidade ( o lado cheio do copo), o seu IPDH (Índice de Potencial de Desenvolvimento Humano), pressupõe uma nova atitude, um rompe paradigmas e, na nossa opinião, condição sine qua non para a construção do ”empowerment”10.
Deixar de olhar apenas para o lado sombrio e obscuro de uma comunidade (o lado vazio do copo), significa abandonar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) como critério único ou o mais importante indicador de elaboração de políticas publicas. Uma das razões da pouca eficácia das políticas públicas no campo da transformação social e do desenvolvimento sustentado se deve a esta postura – autoritária e discriminatória – que vê o “outro”, a comunidade, a partir de suas carências (que é o que mede o IDH) e constrói políticas para superar carência11, de fora para dentro. O resultado é o gasto de energia e o desperdício dos recursos econômicos na maioria das vezes.
2) As formas do fazer: São todas as respostas e soluções criadas para solucionar, na prática, as múltiplas necessidades humanas.
Conforme o tipo de resposta, ela pode ser classificada como um fazer tecnológico, científico, artístico, literário, etc. Há uma tese bastante difundida entre os cientistas sociais que defende a ideia que “o homem desenvolveu sua inteligência, a partir do uso das mãos”. O “homo faber” teria sido o antecessor e a causa do “homo sapiens”.
Verdade ou não, sabe-se que o homem sempre foi um ser de necessidades. E foi satisfazendo-as que ele acumulou experiências, aprendeu a selecionar as respostas mais eficazes e assim, construir um acervo patrimonial de conhecimentos.
Uma resposta bem sucedida a uma necessidade de qualquer natureza (material, espiritual ou social) significa incorporação de um resultado. Todas as vezes que a mesma necessidade surgir, utiliza-se a mesma resposta. Foi assim que surgiu o “uso” e o bom senso. O uso de caráter pessoal passa a ser um “hábito” ao tornar-se público e de domínio de um grupo maior. A prática de um hábito permanentemente por uma coletividade cria o “costume”, uma das marcas identificadoras de um grupo. A permanência deste costume através dos tempos, passando de pai para filho e de filho para neto, cria a “tradição”, elemento identificador e marca registrada do fazer e do saber fazer de uma comunidade ou de um povo determinado.
Este processo de acumulações sucessivas, sistemáticas e sempre atualizadas (porque contemporâneas), constitui a base angular da produção e a constituição do conhecimento, seja de cunho científico (porque usa métodos de estudo e análise específicos para a compreensão de variados objetos), seja de caráter tecnológico (porque produz materiais, soluções e técnicas que facilitam e melhoram a vida humana), seja de essência artística (porque atende aos valores estéticos, sentimentais e não tangíveis da humanidade, através de várias formas de expressão: música, teatro, poesia, pintura, etc.). Todas estas soluções, nós as denominamos, no atacado, de “formas de fazer”. Se quisermos, no varejo, podemos dissecá-las em suas especificidades, científicas, tecnológicas, artísticas, etc.12
3) Os sistemas de decisão: Refere-se à política, à autoridade, à liderança, aos poderes de decisão – macro e micro – institucionais e não, etc.
Em todo grupo social, os sistemas de decisão aparecem ostensiva (como nos caso das lideranças políticas, jurídicas, militares, etc.) ou subliminarmente, como por exemplo, no ambiente familiar, onde, parece, que pai e mãe têm poderes de decisão específicos, como se fosse da natureza do ser pai ou do ser mãe estes poderes. Podemos também perceber esta construção no ambiente escolar, nas formas de exercício do poder, seja vertical ou horizontalmente, autoritário e centralizador ou democrático e participativo. Qual deles favorece a construção da cidadania? ou nos leva a formas harmônicas e sustentáveis de convivência social?
Acreditamos que, se hoje o maior desafio da Humanidade é reduzir todos os impactos ambientais que nos garantam a nossa preservação como espécie, diante dos recursos finitos da Natureza, cremos que todos os “sistemas de decisão” deveriam existir para cumprir, fielmente, os princípios da Carta da Terra.13
Por outro lado, se observamos uma roda de garotos brincando, ali também se exercem em vários momentos, distintas formas e sistemas de decisão, desde o democrático ao mais autoritário.
Entender estes sistemas formais e informais, em ambientes escolares ou comunitários, nos ajudam a planificar e vivenciar espaços democráticos, comunidades diversificadas e cidadania sem exclusão social, condições fundamentais para a construção de “cidades sustentáveis”, por exemplo.
4) As relações de produção: Trata-se do econômico, do financeiro, das formas de trabalho e produção de riquezas, a sobrevivência, etc.
Este indicador refere-se às forças produtivas – quem produz o que e para quem – existentes dentro de um grupo social. Podemos observar este indicador nas formas convencionais de relações de produção e de trabalho, assalariadas ou formais, assim como em todas as esferas da rede produtiva e reprodutiva de bens e serviços, remunerados ou não.
Entender as cadeias produtivas não apenas pelos produtos lançados no mercado, mas, principalmente, pelos processos, valores e sentidos com que acontecem, possibilitam-nos aprender mais sobre o sentido do trabalho na vida das pessoas, rurais e urbanas, valores e crenças e seus quereres.
Atualmente, a dimensão econômica da vida parece ter vida independente das demais, uma das razões do abuso dos recursos finitos que a Natureza nos delegou e, consequentemente, o alto preço que a Humanidade paga por tanta irresponsabilidade. A vida humana, sob esta perspectiva, tem preço e não valor.14
Manfred Max-Neef, prêmio Nobel alternativo de Economia nos mostra quais deveriam ser os cinco (5) alicerces da economia e das relações de produção:
1) A economia está para servir as pessoas e não as pessoas estão para servir a economia;
2) O desenvolvimento se refere às pessoas e não aos objetos;
3) Crescimento não é a mesma coisa que desenvolvimento, e o desenvolvimento não precisa necessariamente do crescimento;
4) A economia não deve desvalorizar o ecossistema;
5) A economia é um subsistema de um sistema maior e finito que é a biosfera, logo o crescimento permanente é impossível.
Para que exista sustentabilidade, Max-Neef defende que nenhum processo ou interesse econômico, em qualquer circunstância, deve prevalecer à vida. Porém, segundo ele, atualmente acontece exatamente o contrário, no que estamos de total acordo.
Para Max-Neef o desenvolvimento deveria ser feito para as pessoas, baseando-se em três pilares:
- na satisfação das necessidades humanas fundamentais;15
- na geração de níveis crescentes de autodependência;
- e na articulação orgânica entre o homem (e sua cultura), a natureza e a tecnologia.
Ainda de acordo com sua teoria, Max-Neef divide as necessidades humanas em dois critérios:
- ontológicos: ser, estar, ter e fazer;
- axiológicos: afeto, criação, entendimento, identidade, liberdade, ócio, participação, proteção, subsistência e transcendência.
5) O meio ambiente: Trata-se do contexto, do entorno, do ambiental, do ecológico, etc.
O homem é produtor e produto, processo e resultado do meio onde vive. O clima e a altitude, a floresta e o mar, o rio e o cerrado, a seca e a poluição, o trânsito engarrafado e o fim de tarde na praia, são como molduras que incluem e influenciam as relações humanas em ritmo, intensidade e formas comportamentais. Considerar o meio ambiente como um indicador social, significa compreendê-lo além de sua face meramente física e natural, mas como um elemento substantivo na constituição das relações e processos humanos que serão o pano de fundo, o território sobre o qual se construirá o desenho cultural de uma comunidade e a possibilidade de fazer dela, uma comunidade sustentável.
Por esta razão, devemos insistir e lutar incansavelmente para que a Carta da Terra seja mais importante que todos os tratados internacionais, inclusive que a própria Declaração dos Direitos do Homem, da ONU.
6) A memória: Refere-se ao passado, ao nosso ontem e anteontem, a origem, ao anterior, etc.
Todo grupo social sabe “de onde veio” e tem uma resposta para explicar o “de onde viemos”. Todos nós recebemos ao nascer uma carga de informações sobre o nosso passado recente e/ou remoto, guardado pela história ou conservado pelo inconsciente coletivo ou pela tradição. Essa carga nós a transportamos conosco, durante toda nossa vida. E ela vai sendo acrescida constantemente de mais informações, ideias, sonhos, lembranças, saudades, desejos, “coisas e cousas”.
A memória de um grupo social se expressa através de seus rituais da ordem e da desordem, sacros e profanos, todos eles elementos simbólicos mantenedores e perpetuadores dos vínculos e das matrizes geradoras desta comunidade.
E é na infância que se exercita e pratica-se a memória que, na velhice nos fará recordar os momentos e os tempos vividos, sonhados e aprendidos.
Enfim, nós somos portadores de uma bagagem humana herdada, outra aprendida e outra ainda construída. Este patrimônio nós vamos deixá-lo, como herança (boa e ruim) para os nossos descendentes.
7) A visão de mundo: Refere-se ao religioso, ao filosófico, ao amanhã, ao depois, ao futuro, ao sonho, etc.
Não há pessoa ou grupo social que não pense no amanhã ou que não imagine o “para onde vamos”. Nem que seja para afirmar “do jeito que as coisas estão, nós não vamos prá lugar nenhum”.
É movido pela ideia do porvir que o homem investe seu tempo e sua energia para apreender, dominar, transformar e se apropriar do mundo à sua volta. Nem que muitas vezes ele o estrague e o piore.
Por outro lado, é interessante perceber que entre a memória e a visão de mundo há uma linha que aproxima estes dois indicadores sociais.
Esta ligação é a base da “teoria do estilingue” (também conhecido como “bodoque” ou “atiradeira”, um instrumento muito apreciado pela meninada quando tem uma vidraça disponível). Todo mundo sabe utilizar um estilingue: se queremos atingir um ponto muito distante devemos esticar o máximo a goma ou borracha do estilingue. Esta é a base para a teoria: quanto mais pudermos voltar no nosso passado e na nossa memória (esticando a borracha), mais longe poderemos chegar (atirar nossa pedra) em nossa visão de mundo. Manter a borracha esticada na medida certa, sem se romper, significa estabelecer “links” e passagens de força, equilíbrio e coerência entre o passado e o futuro. Um risco para o qual deve-se ter muito cuidado é para não esticar a borracha além do que ela pode resistir, pois pode romper-se, e aí o cidadão fica preso no passado, “conversando lá no século XVIII”. Ou melhor: quando as pessoas ou um grupo social não conseguem fazer uma leitura de seu passado, ligando-o de forma coerente ao seu presente, dando-lhe diretrizes e visão de mundo, elas não conseguem construir uma perspectiva de futuro de seu próprio mundo.
Pode-se perceber o peso significativo que este indicador tem na construção de um padrão cultural naquelas comunidades sem expectativa de mudança, sem desejo do novo e do diferente. Em muitas das comunidades onde trabalhamos, a visão de mundo dos grupos sociais é dominado pela terceirização do futuro (transferida para as mãos de governos, políticos, etc.), pelo imobilismo e pela espera da “providência divina”.
Construir futuros significa esticar o estilingue até o limite do possível, projetando, não sonhos impossíveis, mas “utopias”, isto é, “o não feito, ainda”. Se queremos uma sociedade ética, a educação deve prover as aprendizagens éticas. Se queremos uma cidade sustentável, devemos construir e praticar como visão de mundo a sustentabilidade.
Em toda e qualquer comunidade humana (e isto é uma regra geral, absoluta) podemos identificar estes sete (7) indicadores mencionados. E, mais do que isso, podemos perceber que eles não são estáticos, fechados em si mesmo, mas são intercomunicantes e possuidores de intensa capilaridade, semelhante aos vasos e artérias do corpo humano.
Todos estes sete (7) componentes são extremamente dinâmicos, por isso interagem entre si.
Por causa desta interação tornaram-se interdependentes – debatem-se, contrapõem, complementam-se, etc. – formando uma rede de relações (uma trama, um desenho, um padrão) que é condicionante e condicionada pelo corpo de valores universais: todas as “…ades”: generosidade, lealdade, bondade, desonestidade, arbitrariedade, solidariedade, dignidade, ruindade, etc. e todos os “…ismos”: modismo, ideologismo, machismo, messianismo, egoísmo, etc., somados à um montão de outros valores: a violência, o afeto, o respeito, o amor, a ternura, os preconceitos, a alegria, o prazer, etc., presentes em todas as sociedades humanas.
Usando o exemplo do corpo humano, podemos considerar o corpo de valores como o sangue que irriga e perpassa por todas as veias e por todos os órgãos e partes do corpo, alimentando e sendo alimentado por ele.
A partir destes indicadores e suas interfaces, construímos o “nosso” modelo de Cultura: esta rede e trama de relações, processos e suas interações, que forma um padrão ou um desenho, definidor da identidade da comunidade ou grupo social. (Figura 1)
A partir desse conceito palpável e operacional, podemos pensar em processo cultural como a interação e as dinâmicas do padrão ou desenho. E podemos definir o indicador cultural como cada elemento resultante da rede de relações e processos que forma o desenho.
Se estamos de acordo com este raciocínio, podemos pensar, por exemplo, que a cultura local será um desenho envolvendo e interagindo todos os indicadores e valores locais. A cultura regional será um desenho que deve conter necessariamente todos os desenhos correspondentes às culturas locais e suas interações; a cultura nacional, por sua vez, será um desenho que deve conter obrigatoriamente todos os desenhos correspondentes às culturas regionais e suas interações.
Com esse enfoque, podemos, por exemplo, definir que um “projeto de desenvolvimento” (de qualquer natureza) é uma ação-intervenção planejada no desenho cultural (e suas relações) de uma determinada comunidade local, regional ou nacional.
Mas, se ousarmos mais e pensarmos um “projeto de desenvolvimento sustentado, como por exemplo “Cidades Sustentáveis”, então estamos diante de um novo desafio: ajustar de forma harmônica as duas mandalas (Cultura e Cidade Sustentável) e, buscar arquitetar uma nova plataforma de Desenvolvimento Sustentado. (Figuras 2 e 3).17
Consequentemente, se pensarmos, por exemplo, no planejamento de um desenho cultural brasileiro, seja local, regional ou nacional, que constitui o cerne das propostas e políticas de desenvolvimento sustentado, deveria ter como característica e ênfase a heterogeneidade e a diversidade culturais, que de fato constituem a marca de nossa nacionalidade, o caráter de nosso país e sua verdade histórica.
Passando do nível macro (nacional) para o nível micro (local), temos que considerar que estas diversidades e heterogeneidades se manifestam como piscadelas imperceptíveis ou substanciosa em todos os âmbitos.
Percebê-las em seus microcosmos torna-se uma das tarefas mais estimulantes dos planificadores. Assim sendo, não podemos cair na armadilha, por exemplo, de admitir como democratização da cultura brasileira (ou realização de um projeto nacional de desenvolvimento sustentado, por exemplo) um maior acesso dos diferentes grupos sociais espalhados por este país aos bens de uma dada cultura (ou um único desenho), porque isto a homogeneizaria e a uniformizaria, desfigurando- a. Por outro lado, perderíamos o caráter de nação brasileira, porque estimularíamos o desenvolvimento (educacional, social e econômico, por exemplo) de um único desenho, o que não corresponde ao nosso processo histórico.
Se estamos de acordo com as premissas anteriores, podemos aceitar também que “toda e qualquer forma de conhecimento” será sempre uma leitura, uma interpretação e um aprendizado, parcial e relativo, da cultura.
O conhecimento científico (sistemático e sistematizado, resultante da aplicação de métodos específicos para cada ciência), ou o conhecimento não-formal (empírico, não-sistematizado, resultante da vivência e do senso comum), um e outro, são e serão sempre relativos e parciais. Nenhum melhor ou pior do que o outro. Antagônicos muitas vezes, complementares outras, não opostos necessariamente, autosuficientes nunca. Ambos importantes porque permitem e possibilitam uma compreensão mais profunda e mais rica do ser e da cultura humana.
E esta é, cremos nós, a finalidade da cultura, ser instrumento eficaz do conhecimento, possibilitando leituras mais densas, mais ricas, mais abrangentes e mais humanas da nossa “travessia”, tangendo com perícia a canoa da vida em direção à “terceira margem”, nesta busca permanente e vocação natural, para ser feliz.
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1 Este texto foi elaborado para servir de subsídio e reflexão conceitual e, ambiciosamente, instrumento de trabalho para os participantes da “Desconferência: Cultura e Sustentabilidade”, RIO + 20, Rio de Janeiro, Junho de 2012.
2 Um dos meus maiores desejos é um dia encontrar um professor que, semelhante ao professor do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, mande arrancar a página contendo a ilustração da teoria darwiniana pelos desserviços por ela prestados, como ele mandou fazer com a página contendo a definição de poesia.
3 Eu só conheço duas: limpar panelas engorduradas e colocar em antenas de TV (dizem que funciona). As outras 999 não conheço!
4 Em geral as definições de cultura variam do extremamente amplo e sem utilidade prática (“cultura é tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza” ou “cultura é toda maneira de pensar, agir e sentir dos homens”, etc) ao extremamente específico e reducionista (“cultura é arte” ou “cultura é erudição”, etc). Por isso, nas “Feiras de Cultura “ das escolas só participam as atividades ditas artísticas, nunca as produtivas e sociais.
5 A Constituição Brasileira de 1988 introduziu no Capítulo referente à Cultura a seguinte pérola: a garantia dos “direitos culturais” do cidadão. Quais são os nossos “direitos culturais”? Deveria haver também “deveres culturais”? E quando os nossos “direitos culturais” (que não sabemos quais) são desrespeitados, devemos recorrer a quem?…
6 Esta separação é unicamente do ponto de vista de histórico. Enquanto os ágrafos (“sem grafia, sem escrita”) não têm uma história baseada em documentos escritos, os povos civilizados (“com escrita”) têm na escrita a base para construção de sua documentação e comprovação histórica.
Esta separação não autoriza ninguém a dizer que os povos civilizados têm mais cultura que os povos ágrafos, por exemplo.
7 A cultura, este desenho, trama ou padrão dinâmico e interrelacional, é comparada por Gilbert Ryle (in The Concept of Mind), como “piscadelas”(que é o ato de piscar os olhos). Citado por Clifford Geertz no “A Interpretação das Culturas”, Zahar Editores, RJ, 1978.
8 Roberto Da Matta, in “O que faz o Brasil brasil?”, Editora Brasiliense, SP, 1990.
9 Os estudos desenvolvidos pela Universidade de Harward (EUA) sobre o grau de desenvolvimento das cidades italianas na década de 70, a partir do amplo e acelerado processo de descentralização e de municipalização ocorrido naquele país, demonstram que quanto mais espaços e/ou oportunidades de convivência social (formas organizativas) forem oferecidos aos habitantes de uma dada comunidade, mais formas e possibilidades de participação estarão sendo geradas, ampliando os espaços e momentos de protagonismo social e acúmulo de capital social. E isto se dá numa relação diretamente proporcional: (+oportunidades de informação e +vivências µ +participação e + protagonismo µ +capital social), pilar de sustentação de desenvolvimento. E o acúmulo de capital social numa comunidade qualquer é determinante, não só para enfrentar velhos problemas, mas, e principalmente, para dar respostas mais rápidas e mais eficientes para os novos desafios, de qualquer natureza.
10 Esta expressão tem sido traduzida como “empoderamento”, mas lá no sertão de Minas as comunidades criaram uma melhor: “empodemento”, isto é, “Quer dizer que nós pode? Nós pode!” E, se todos entenderam, a concordância resolvemos depois. Produzir “empodementos” passou a ser um ponto fundamental do nosso trabalho e um dos objetivos essenciais de qualquer plataforma de transformação social e desenvolvimento sustentável.
11 – Quem é carente neste país? – Carentes somos todos nós. Carentes de ética dos nossos politicos, governamentes e juízes. Carentes de parlamentares comprometidos com o bem publico. Carentes de lisura e honestidade entre nossos empresários. Carentes de escolas públicas e serviços públicos dignos e para todos. Enfim, carente sou eu: meu time não ganha um título nacional há 40 anos! (rsrsrsrs).
Se queremos, de fato, desenvolvimento sustentado, o caminho é aprender o “lado cheio do copo”, o que só uma leitura da diversidade cultural de forma densa, profunda e ao mesmo tempo microscópica, nos permite.
Todos nós, sem exceção, somos carentes. Portanto, usar indicadores de carência não nos permite construir desenvolvimento sustentável, pois eles são excludentes, discriminatórios e de pouca valia!
12 O CPCD vem, desde 1984, acumulando um acervo de tecnologias populares, de baixo custo e de fácil construção, adaptadas e apropriadas, adequadas às necessidades locais – familiares e comunitárias – em meios rurais e periféricos urbanos, através de várias “fabriquetas”. Todas elas partiram do que denominamos a “pedagogia do sabão”. Já são mais de 1.700 tecnologias catalogadas e replicadas. Um acervo que não se esgota!
13 A Carta da Terra é, em minha opinião, o mais importante documento e consenso produzido pela Humanidade no século XX. São 16 os princípios que norteiam a nossa vida e permanência em nossa morada, o “Ethos”, a Terra, de maneira sustentavel.
Todas as escolas – do prézinho ao pósdoctor – deveriam construir seus currículos educacionais, a partir dos princípios da Carta da Terra!
14 Para entender melhor a diferença entre “preço” e “valor”, é simples. Leite materno tem valor. Leite em pó tem preço. A vida das pessoas medida em “PIB” tem preço. A vida das pessoas medida em “Sustentabilidade” tem que ter valor!
15 No final deste texto apresentamos, como sugestão para os membros da Desconferência Cultura e Sustentabilidade Rio + 20, e sob forma de uma equação, uma plataforma de transformação social e construção de “cidade sustentável”, as Necessidades Humanas Fundamentais, de acordo com Manfred Max-Neef, com quem tive o privilégio e a honra de trabalhar, na década de 70, em Tiradentes, MG.
16 Ao final deste texto, apresentamos além as duas mandalas, Cultura e Cidade Sustentável. E como exercício de arquitetura e designer propomos para os leitores e participantes da “Desconferência Cultura e Sustentabilidade,, construer, coletivamente uma terceira mandala que engloba todas as sinergias. Este deve ser é um exercício de construção de futuro, possível e para todos.
Sobre o autor: Tião Rocha
Meu nome é Tião Rocha. Sebastião o meu apelido. Ninguém de chama por apelido.
Sou antropólogo (por formação acadêmica), educador (por opção política), folclorista (por necessidade), mineiro (por sorte) e atleticano (por sina).
Idealizador e diretor-presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento – CPCD, uma ONG criada em 1984 como a finalidade de ser uma instituição de aprendizagem.
É o que somos e fazemos, há 28 anos: aprender!
Tião Rocha |
Todo e qualquer ser humano tem cultura. Esta é uma das poucas “verdades absolutas” da Antropologia. Apesar da afirmação parecer óbvia, não é, pois muita gente ainda pensa que alguns seres humanos não têm cultura. Outros acreditam que só eles a possuem. Uma minoria, mas de grande poder financeiro e social, crê, firmemente, que sua cultura é superior a dos outros. Por isso, eles se julgam melhores e superiores. Talvez, devido à essa ideia que se pretende dominante, uma grande maioria acostumou-se, ou foi acostumada, a pensar que não tem cultura alguma.
Um dos maiores pecados cometidos pela mesma Antropologia foi fazer as pessoas acreditarem, por muito tempo, que havia homens superiores a outros, pelo simples fato de nascerem em lugares diferentes ou viverem de maneiras diferentes. Aí o conceito de cultura passou a ser a justificativa “científica” da imposição do modelo branco, capitalista, cristão e europeu como “superior” a todos os demais. Aquele desenho ilustrativo da teoria evolutiva da espécie humana, segundo Charles Darwin, presente em todos os livros de ciências, história ou geografia usados pelos estudantes em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, é uma demonstração da presença ainda dos valores evolucionistas, do símio antropóide ao homem branco, final da linha evolutiva².
E, se observamos bem aquele desenho, observamos que a dita espécie humana “evolui” (sic) do negro para o branco. Está aí, “explicada” e “justificada” pela mesma Antropologia da maldita permanência, até hoje, de todas as formas de preconceito e racismo contra as populações negras.
Outro equívoco que rodeia a ideia de cultura e que, infelizmente, a Antropologia não ajuda resolver, é quanto ao uso variado e de pouca utilidade que se faz do conceito de cultura (parece “Bombril”, tem mil e uma utilidades, diz a propaganda³ ).
As instituições educacionais, em geral, são mestres em desqualificar suas próprias definições. Pensam cultura como algo grande, amplo, abrangente e universalizador e a praticam de forma pequena, residual, excludente e corporativa4.
Decorrente do uso indiscriminado ou interesseiro da palavra cultura, ela foi perdendo sua substância e significado, tornando-se uma expressão esvaziada5.
É muito comum se ouvir “este é um problema cultural”, quando alguém quer se referir a algo que não sabe bem o que seja ou quando é uma questão de difícil solução, ou quando não se quer dizer nada.
Por todas essas razões, fica claro que a verdade antropológica – “todo e qualquer ser humano tem cultura” – aparentemente óbvia, não é? Desta forma, as questões culturais dentro de uma escola, comunidade ou cidade, tanto servem para indicar um “problema” ou “justificar” a não aprendizagem dos alunos ou a falta de participação das pessoas na associação de bairro, ou a não presença do setor cultural no planejamento das políticas públicas municipais, estaduais e nacionais e, muito menos em outras agendas internacionais.
Foi essa fluidez conceitual que nos obrigou, enquanto profissionais que trabalhamos com educação, cultura e desenvolvimento sustentado e tentam fazer dela instrumento de sua ação pedagógica, institucional e estratégica, a limpar a palavra de suas impurezas ideológicas, (tais como “superioridade cultural”, ou “cultura = erudição”, etc.) e, em contrapartida, construir um novo conceito que fosse ao mesmo tempo, operacional, mensurável, observável e cientificamente correto.
Para iniciar esta construção fomos buscar outra contribuição na Antropologia e da qual ela pode-se orgulhar: em toda e qualquer comunidade humana (e não é presunção, é em toda mesmo!) existem e interagem diversos componentes substantivos (que nós denominamos “indicadores sociais”) que podem ser identificados, medidos e observados e que, ao interagir entre si, constroem desenhos ou o padrões culturais dos grupos humanos que aí vivem.
São sete (7) estes indicadores e eles são o ponto de partida para a construção do nosso modelo. Podemos encontrá-los tanto entre os grupos ágrafos quanto entre os povos ditos “civilizados”6. Tanto entre as tribos haussás da África, quanto entre os índios Kreenakarore do Brasil. Podemos encontrá-los também em qualquer outra comunidade, rica ou pobre, urbana ou rural, seja do Vale do Jequitinhonha ou do Maranhão, seja de São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Londres ou de Pequim.
Qualquer um dos sete (7) indicadores sociais pode ser (e é) objeto de análise e estudo independente de qualquer outro; no entanto ele só se torna um indicador cultural quando estabelece contato com outros indicadores de forma dinâmica, produzindo um desenho, uma teia de relações, tramas e padrões de convivência, gerando valores ou sendo influenciado pelos valores universais presentes nesta comunidade.
A próxima etapa da nossa tarefa seria como perceber a presença deste desenho no dia-a-dia de nosso trabalho, na rotina da vida de uma comunidade e de uma cidade. A perspectiva desenvolvida por Gilbert Ryle deu-nos a orientação metodológica de que necessitávamos7.
O paralelo “cultura – piscadela” pode ser assim explicado: todas as pessoas piscam os olhos. Fazem isso inconsciente e naturalmente. Ninguém se dá conta que pisca, muito ou pouco. (Aliás, cremos nós, pode ser sinal de maluquice completa encontrar alguém que conte quantas piscadelas deu durante um dia, por exemplo). Assim como todos nós piscamos, mas não pensamos nisso, com a nossa cultura também é assim. Todos a vivem sem se dar conta que seja ou não cultura. Ela se produz socialmente, mas acontece, naturalmente. Flui, semelhante às piscadelas.
A cultura é algo humano, social, público, visível, perceptível, notório, mas microscópico. Nela estão presentes os saberes, os fazeres e os quereres necessários para nossa formação humana e cidadã. Ela é a matéria-prima de toda nossa educação e a plataforma de uma sociedade sustentável.
Se, todavia, há piscadelas e “piscadelas” (algumas são macroscópicas, como o olhar de uma criança que não fez o dever de casa diante de sua professora, ou aquela, fatal, que um homem lança em direção de uma mulher (ou vice-versa) carregada de intencionalidade e desejo, o que pode gerar aproximação, se houver outra piscadela igual como resposta, ou um “pé de briga” entre casais enciumados, por exemplo.
Em relação à cultura, podemos dentro de uma macro-trama, perceber micro-desenhos simbólicos e repletos de significantes, como nas brincadeiras de rodas infantis, nas festas populares e de rua ou nos “rituais da ordem” 8 que simbolizam e mantém o nosso sistema político.
E é neste mar de “piscadelas”, micro e macroscópicas (simbólicas, ritualistas, intencionais, coerentes ou não, etc.) que navegamos (aprendemos, construímos, interpretamos, etc.) durante nossa vida. O verdadeiro educador é aquele que aprende ler estas “piscadelas” e as transforma em aprendizagens permanentes. Da mesma forma, o melhor gestor ou planificador de desenvolvimento sustentado será aquele que conseguir ler e diferenciar “piscadelas de piscadelas”.
Se estamos de acordo com esta abordagem, pensamos que o maior desafio, tanto para os educadores ou para quem pensa (e planeja) a construção de sociedades sustentáveis é diferenciar piscadelas de piscadelas. “Cultura” e culturas.
A seguir fazemos alguns comentários sobre cada um dos indicadores sociais presentes em qualquer grupo social:
1) As formas organizativas: referem-se aos laços de parentesco, às diversas instituições permanentes, temporárias ou ocasionais de convivência, aos grupos de interesse tais como o compadrio, as turmas, as “galeras”, etc.
Neste rol podemos listar uma infinidade delas: a família, a vizinhança, os amigos, a turma do chope, o grupo de oração, os companheiros de futebol, o pessoal do pagode, as comadres da esquina, os meninos da pelada, os jogadores de truco, as meninas das brincadeiras de boneca, etc.
Este indicador tem sido um importante instrumento de observação e pesquisa dos processos e ritmos de desenvolvimento sustentado, local ou regional.
Ele é uma peça fundamental na construção do moderno conceito de “capital social”9.
A nossa experiência pessoal e institucional, nesta área, também nos autoriza afirmar que naquelas localidades onde não há oferta de formas de convivência comunitária em quantidade e qualidade, poucas oportunidades de participação e de protagonismo são geradas, o tempo de resposta aos problemas é muito lento. O tempo de rotinas aumenta e o tempo de desejos e desafios decresce. O imobilismo social se acentua enormemente (“Quando surge um crepúsculo avermelhado, os besouros pensam que é incêndio”, segundo o poeta Manoel de Barros). E esta lentidão de respostas é observada na falta de vontade e ambição das pessoas, principalmente dos jovens, na baixa estima social da coletividade, no comodismo e atraso em relação a outras comunidades.
O auto desprezo (que é o oposto da auto estima) é uma região de carência de qualquer capital social. Um lugar onde não se aprende e nem se ensina. Lugar onde a cidadania não existe. Tirar as pessoas deste limbo, onde a “melancolia social” impera, significa inventar tantas formas diferentes e inovadoras de capital social quanto forem necessárias.
Somente comunidades com alguma auto estima produzem transformação social e, portanto, conseguem construir sociedades sustentáveis.
Fazer leituras densas e diversificadas dos tempos e ritmos de vida, desenhos particulares, traços e formas coletivas, organizativas de uma dada sociedade é o melhor caminho para a construção de pontes e atalhos, caminhos de superação, da sub-cidadania para uma sociedade sustentável.
Investir no lado luminoso de uma comunidade ( o lado cheio do copo), o seu IPDH (Índice de Potencial de Desenvolvimento Humano), pressupõe uma nova atitude, um rompe paradigmas e, na nossa opinião, condição sine qua non para a construção do ”empowerment”10.
Deixar de olhar apenas para o lado sombrio e obscuro de uma comunidade (o lado vazio do copo), significa abandonar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) como critério único ou o mais importante indicador de elaboração de políticas publicas. Uma das razões da pouca eficácia das políticas públicas no campo da transformação social e do desenvolvimento sustentado se deve a esta postura – autoritária e discriminatória – que vê o “outro”, a comunidade, a partir de suas carências (que é o que mede o IDH) e constrói políticas para superar carência11, de fora para dentro. O resultado é o gasto de energia e o desperdício dos recursos econômicos na maioria das vezes.
2) As formas do fazer: São todas as respostas e soluções criadas para solucionar, na prática, as múltiplas necessidades humanas.
Conforme o tipo de resposta, ela pode ser classificada como um fazer tecnológico, científico, artístico, literário, etc. Há uma tese bastante difundida entre os cientistas sociais que defende a ideia que “o homem desenvolveu sua inteligência, a partir do uso das mãos”. O “homo faber” teria sido o antecessor e a causa do “homo sapiens”.
Verdade ou não, sabe-se que o homem sempre foi um ser de necessidades. E foi satisfazendo-as que ele acumulou experiências, aprendeu a selecionar as respostas mais eficazes e assim, construir um acervo patrimonial de conhecimentos.
Uma resposta bem sucedida a uma necessidade de qualquer natureza (material, espiritual ou social) significa incorporação de um resultado. Todas as vezes que a mesma necessidade surgir, utiliza-se a mesma resposta. Foi assim que surgiu o “uso” e o bom senso. O uso de caráter pessoal passa a ser um “hábito” ao tornar-se público e de domínio de um grupo maior. A prática de um hábito permanentemente por uma coletividade cria o “costume”, uma das marcas identificadoras de um grupo. A permanência deste costume através dos tempos, passando de pai para filho e de filho para neto, cria a “tradição”, elemento identificador e marca registrada do fazer e do saber fazer de uma comunidade ou de um povo determinado.
Este processo de acumulações sucessivas, sistemáticas e sempre atualizadas (porque contemporâneas), constitui a base angular da produção e a constituição do conhecimento, seja de cunho científico (porque usa métodos de estudo e análise específicos para a compreensão de variados objetos), seja de caráter tecnológico (porque produz materiais, soluções e técnicas que facilitam e melhoram a vida humana), seja de essência artística (porque atende aos valores estéticos, sentimentais e não tangíveis da humanidade, através de várias formas de expressão: música, teatro, poesia, pintura, etc.). Todas estas soluções, nós as denominamos, no atacado, de “formas de fazer”. Se quisermos, no varejo, podemos dissecá-las em suas especificidades, científicas, tecnológicas, artísticas, etc.12
3) Os sistemas de decisão: Refere-se à política, à autoridade, à liderança, aos poderes de decisão – macro e micro – institucionais e não, etc.
Em todo grupo social, os sistemas de decisão aparecem ostensiva (como nos caso das lideranças políticas, jurídicas, militares, etc.) ou subliminarmente, como por exemplo, no ambiente familiar, onde, parece, que pai e mãe têm poderes de decisão específicos, como se fosse da natureza do ser pai ou do ser mãe estes poderes. Podemos também perceber esta construção no ambiente escolar, nas formas de exercício do poder, seja vertical ou horizontalmente, autoritário e centralizador ou democrático e participativo. Qual deles favorece a construção da cidadania? ou nos leva a formas harmônicas e sustentáveis de convivência social?
Acreditamos que, se hoje o maior desafio da Humanidade é reduzir todos os impactos ambientais que nos garantam a nossa preservação como espécie, diante dos recursos finitos da Natureza, cremos que todos os “sistemas de decisão” deveriam existir para cumprir, fielmente, os princípios da Carta da Terra.13
Por outro lado, se observamos uma roda de garotos brincando, ali também se exercem em vários momentos, distintas formas e sistemas de decisão, desde o democrático ao mais autoritário.
Entender estes sistemas formais e informais, em ambientes escolares ou comunitários, nos ajudam a planificar e vivenciar espaços democráticos, comunidades diversificadas e cidadania sem exclusão social, condições fundamentais para a construção de “cidades sustentáveis”, por exemplo.
4) As relações de produção: Trata-se do econômico, do financeiro, das formas de trabalho e produção de riquezas, a sobrevivência, etc.
Este indicador refere-se às forças produtivas – quem produz o que e para quem – existentes dentro de um grupo social. Podemos observar este indicador nas formas convencionais de relações de produção e de trabalho, assalariadas ou formais, assim como em todas as esferas da rede produtiva e reprodutiva de bens e serviços, remunerados ou não.
Entender as cadeias produtivas não apenas pelos produtos lançados no mercado, mas, principalmente, pelos processos, valores e sentidos com que acontecem, possibilitam-nos aprender mais sobre o sentido do trabalho na vida das pessoas, rurais e urbanas, valores e crenças e seus quereres.
Atualmente, a dimensão econômica da vida parece ter vida independente das demais, uma das razões do abuso dos recursos finitos que a Natureza nos delegou e, consequentemente, o alto preço que a Humanidade paga por tanta irresponsabilidade. A vida humana, sob esta perspectiva, tem preço e não valor.14
Manfred Max-Neef, prêmio Nobel alternativo de Economia nos mostra quais deveriam ser os cinco (5) alicerces da economia e das relações de produção:
1) A economia está para servir as pessoas e não as pessoas estão para servir a economia;
2) O desenvolvimento se refere às pessoas e não aos objetos;
3) Crescimento não é a mesma coisa que desenvolvimento, e o desenvolvimento não precisa necessariamente do crescimento;
4) A economia não deve desvalorizar o ecossistema;
5) A economia é um subsistema de um sistema maior e finito que é a biosfera, logo o crescimento permanente é impossível.
Para que exista sustentabilidade, Max-Neef defende que nenhum processo ou interesse econômico, em qualquer circunstância, deve prevalecer à vida. Porém, segundo ele, atualmente acontece exatamente o contrário, no que estamos de total acordo.
Para Max-Neef o desenvolvimento deveria ser feito para as pessoas, baseando-se em três pilares:
- na satisfação das necessidades humanas fundamentais;15
- na geração de níveis crescentes de autodependência;
- e na articulação orgânica entre o homem (e sua cultura), a natureza e a tecnologia.
Ainda de acordo com sua teoria, Max-Neef divide as necessidades humanas em dois critérios:
- ontológicos: ser, estar, ter e fazer;
- axiológicos: afeto, criação, entendimento, identidade, liberdade, ócio, participação, proteção, subsistência e transcendência.
5) O meio ambiente: Trata-se do contexto, do entorno, do ambiental, do ecológico, etc.
O homem é produtor e produto, processo e resultado do meio onde vive. O clima e a altitude, a floresta e o mar, o rio e o cerrado, a seca e a poluição, o trânsito engarrafado e o fim de tarde na praia, são como molduras que incluem e influenciam as relações humanas em ritmo, intensidade e formas comportamentais. Considerar o meio ambiente como um indicador social, significa compreendê-lo além de sua face meramente física e natural, mas como um elemento substantivo na constituição das relações e processos humanos que serão o pano de fundo, o território sobre o qual se construirá o desenho cultural de uma comunidade e a possibilidade de fazer dela, uma comunidade sustentável.
Por esta razão, devemos insistir e lutar incansavelmente para que a Carta da Terra seja mais importante que todos os tratados internacionais, inclusive que a própria Declaração dos Direitos do Homem, da ONU.
6) A memória: Refere-se ao passado, ao nosso ontem e anteontem, a origem, ao anterior, etc.
Todo grupo social sabe “de onde veio” e tem uma resposta para explicar o “de onde viemos”. Todos nós recebemos ao nascer uma carga de informações sobre o nosso passado recente e/ou remoto, guardado pela história ou conservado pelo inconsciente coletivo ou pela tradição. Essa carga nós a transportamos conosco, durante toda nossa vida. E ela vai sendo acrescida constantemente de mais informações, ideias, sonhos, lembranças, saudades, desejos, “coisas e cousas”.
A memória de um grupo social se expressa através de seus rituais da ordem e da desordem, sacros e profanos, todos eles elementos simbólicos mantenedores e perpetuadores dos vínculos e das matrizes geradoras desta comunidade.
E é na infância que se exercita e pratica-se a memória que, na velhice nos fará recordar os momentos e os tempos vividos, sonhados e aprendidos.
Enfim, nós somos portadores de uma bagagem humana herdada, outra aprendida e outra ainda construída. Este patrimônio nós vamos deixá-lo, como herança (boa e ruim) para os nossos descendentes.
7) A visão de mundo: Refere-se ao religioso, ao filosófico, ao amanhã, ao depois, ao futuro, ao sonho, etc.
Não há pessoa ou grupo social que não pense no amanhã ou que não imagine o “para onde vamos”. Nem que seja para afirmar “do jeito que as coisas estão, nós não vamos prá lugar nenhum”.
É movido pela ideia do porvir que o homem investe seu tempo e sua energia para apreender, dominar, transformar e se apropriar do mundo à sua volta. Nem que muitas vezes ele o estrague e o piore.
Por outro lado, é interessante perceber que entre a memória e a visão de mundo há uma linha que aproxima estes dois indicadores sociais.
Esta ligação é a base da “teoria do estilingue” (também conhecido como “bodoque” ou “atiradeira”, um instrumento muito apreciado pela meninada quando tem uma vidraça disponível). Todo mundo sabe utilizar um estilingue: se queremos atingir um ponto muito distante devemos esticar o máximo a goma ou borracha do estilingue. Esta é a base para a teoria: quanto mais pudermos voltar no nosso passado e na nossa memória (esticando a borracha), mais longe poderemos chegar (atirar nossa pedra) em nossa visão de mundo. Manter a borracha esticada na medida certa, sem se romper, significa estabelecer “links” e passagens de força, equilíbrio e coerência entre o passado e o futuro. Um risco para o qual deve-se ter muito cuidado é para não esticar a borracha além do que ela pode resistir, pois pode romper-se, e aí o cidadão fica preso no passado, “conversando lá no século XVIII”. Ou melhor: quando as pessoas ou um grupo social não conseguem fazer uma leitura de seu passado, ligando-o de forma coerente ao seu presente, dando-lhe diretrizes e visão de mundo, elas não conseguem construir uma perspectiva de futuro de seu próprio mundo.
Pode-se perceber o peso significativo que este indicador tem na construção de um padrão cultural naquelas comunidades sem expectativa de mudança, sem desejo do novo e do diferente. Em muitas das comunidades onde trabalhamos, a visão de mundo dos grupos sociais é dominado pela terceirização do futuro (transferida para as mãos de governos, políticos, etc.), pelo imobilismo e pela espera da “providência divina”.
Construir futuros significa esticar o estilingue até o limite do possível, projetando, não sonhos impossíveis, mas “utopias”, isto é, “o não feito, ainda”. Se queremos uma sociedade ética, a educação deve prover as aprendizagens éticas. Se queremos uma cidade sustentável, devemos construir e praticar como visão de mundo a sustentabilidade.
Em toda e qualquer comunidade humana (e isto é uma regra geral, absoluta) podemos identificar estes sete (7) indicadores mencionados. E, mais do que isso, podemos perceber que eles não são estáticos, fechados em si mesmo, mas são intercomunicantes e possuidores de intensa capilaridade, semelhante aos vasos e artérias do corpo humano.
Todos estes sete (7) componentes são extremamente dinâmicos, por isso interagem entre si.
Por causa desta interação tornaram-se interdependentes – debatem-se, contrapõem, complementam-se, etc. – formando uma rede de relações (uma trama, um desenho, um padrão) que é condicionante e condicionada pelo corpo de valores universais: todas as “…ades”: generosidade, lealdade, bondade, desonestidade, arbitrariedade, solidariedade, dignidade, ruindade, etc. e todos os “…ismos”: modismo, ideologismo, machismo, messianismo, egoísmo, etc., somados à um montão de outros valores: a violência, o afeto, o respeito, o amor, a ternura, os preconceitos, a alegria, o prazer, etc., presentes em todas as sociedades humanas.
Usando o exemplo do corpo humano, podemos considerar o corpo de valores como o sangue que irriga e perpassa por todas as veias e por todos os órgãos e partes do corpo, alimentando e sendo alimentado por ele.
A partir destes indicadores e suas interfaces, construímos o “nosso” modelo de Cultura: esta rede e trama de relações, processos e suas interações, que forma um padrão ou um desenho, definidor da identidade da comunidade ou grupo social. (Figura 1)
Se estamos de acordo com este raciocínio, podemos pensar, por exemplo, que a cultura local será um desenho envolvendo e interagindo todos os indicadores e valores locais. A cultura regional será um desenho que deve conter necessariamente todos os desenhos correspondentes às culturas locais e suas interações; a cultura nacional, por sua vez, será um desenho que deve conter obrigatoriamente todos os desenhos correspondentes às culturas regionais e suas interações.
Com esse enfoque, podemos, por exemplo, definir que um “projeto de desenvolvimento” (de qualquer natureza) é uma ação-intervenção planejada no desenho cultural (e suas relações) de uma determinada comunidade local, regional ou nacional.
Mas, se ousarmos mais e pensarmos um “projeto de desenvolvimento sustentado, como por exemplo “Cidades Sustentáveis”, então estamos diante de um novo desafio: ajustar de forma harmônica as duas mandalas (Cultura e Cidade Sustentável) e, buscar arquitetar uma nova plataforma de Desenvolvimento Sustentado. (Figuras 2 e 3).17
Consequentemente, se pensarmos, por exemplo, no planejamento de um desenho cultural brasileiro, seja local, regional ou nacional, que constitui o cerne das propostas e políticas de desenvolvimento sustentado, deveria ter como característica e ênfase a heterogeneidade e a diversidade culturais, que de fato constituem a marca de nossa nacionalidade, o caráter de nosso país e sua verdade histórica.
Passando do nível macro (nacional) para o nível micro (local), temos que considerar que estas diversidades e heterogeneidades se manifestam como piscadelas imperceptíveis ou substanciosa em todos os âmbitos.
Percebê-las em seus microcosmos torna-se uma das tarefas mais estimulantes dos planificadores. Assim sendo, não podemos cair na armadilha, por exemplo, de admitir como democratização da cultura brasileira (ou realização de um projeto nacional de desenvolvimento sustentado, por exemplo) um maior acesso dos diferentes grupos sociais espalhados por este país aos bens de uma dada cultura (ou um único desenho), porque isto a homogeneizaria e a uniformizaria, desfigurando- a. Por outro lado, perderíamos o caráter de nação brasileira, porque estimularíamos o desenvolvimento (educacional, social e econômico, por exemplo) de um único desenho, o que não corresponde ao nosso processo histórico.
Se estamos de acordo com as premissas anteriores, podemos aceitar também que “toda e qualquer forma de conhecimento” será sempre uma leitura, uma interpretação e um aprendizado, parcial e relativo, da cultura.
O conhecimento científico (sistemático e sistematizado, resultante da aplicação de métodos específicos para cada ciência), ou o conhecimento não-formal (empírico, não-sistematizado, resultante da vivência e do senso comum), um e outro, são e serão sempre relativos e parciais. Nenhum melhor ou pior do que o outro. Antagônicos muitas vezes, complementares outras, não opostos necessariamente, autosuficientes nunca. Ambos importantes porque permitem e possibilitam uma compreensão mais profunda e mais rica do ser e da cultura humana.
E esta é, cremos nós, a finalidade da cultura, ser instrumento eficaz do conhecimento, possibilitando leituras mais densas, mais ricas, mais abrangentes e mais humanas da nossa “travessia”, tangendo com perícia a canoa da vida em direção à “terceira margem”, nesta busca permanente e vocação natural, para ser feliz.
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1 Este texto foi elaborado para servir de subsídio e reflexão conceitual e, ambiciosamente, instrumento de trabalho para os participantes da “Desconferência: Cultura e Sustentabilidade”, RIO + 20, Rio de Janeiro, Junho de 2012.
2 Um dos meus maiores desejos é um dia encontrar um professor que, semelhante ao professor do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, mande arrancar a página contendo a ilustração da teoria darwiniana pelos desserviços por ela prestados, como ele mandou fazer com a página contendo a definição de poesia.
3 Eu só conheço duas: limpar panelas engorduradas e colocar em antenas de TV (dizem que funciona). As outras 999 não conheço!
4 Em geral as definições de cultura variam do extremamente amplo e sem utilidade prática (“cultura é tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza” ou “cultura é toda maneira de pensar, agir e sentir dos homens”, etc) ao extremamente específico e reducionista (“cultura é arte” ou “cultura é erudição”, etc). Por isso, nas “Feiras de Cultura “ das escolas só participam as atividades ditas artísticas, nunca as produtivas e sociais.
5 A Constituição Brasileira de 1988 introduziu no Capítulo referente à Cultura a seguinte pérola: a garantia dos “direitos culturais” do cidadão. Quais são os nossos “direitos culturais”? Deveria haver também “deveres culturais”? E quando os nossos “direitos culturais” (que não sabemos quais) são desrespeitados, devemos recorrer a quem?…
6 Esta separação é unicamente do ponto de vista de histórico. Enquanto os ágrafos (“sem grafia, sem escrita”) não têm uma história baseada em documentos escritos, os povos civilizados (“com escrita”) têm na escrita a base para construção de sua documentação e comprovação histórica.
Esta separação não autoriza ninguém a dizer que os povos civilizados têm mais cultura que os povos ágrafos, por exemplo.
7 A cultura, este desenho, trama ou padrão dinâmico e interrelacional, é comparada por Gilbert Ryle (in The Concept of Mind), como “piscadelas”(que é o ato de piscar os olhos). Citado por Clifford Geertz no “A Interpretação das Culturas”, Zahar Editores, RJ, 1978.
8 Roberto Da Matta, in “O que faz o Brasil brasil?”, Editora Brasiliense, SP, 1990.
9 Os estudos desenvolvidos pela Universidade de Harward (EUA) sobre o grau de desenvolvimento das cidades italianas na década de 70, a partir do amplo e acelerado processo de descentralização e de municipalização ocorrido naquele país, demonstram que quanto mais espaços e/ou oportunidades de convivência social (formas organizativas) forem oferecidos aos habitantes de uma dada comunidade, mais formas e possibilidades de participação estarão sendo geradas, ampliando os espaços e momentos de protagonismo social e acúmulo de capital social. E isto se dá numa relação diretamente proporcional: (+oportunidades de informação e +vivências µ +participação e + protagonismo µ +capital social), pilar de sustentação de desenvolvimento. E o acúmulo de capital social numa comunidade qualquer é determinante, não só para enfrentar velhos problemas, mas, e principalmente, para dar respostas mais rápidas e mais eficientes para os novos desafios, de qualquer natureza.
10 Esta expressão tem sido traduzida como “empoderamento”, mas lá no sertão de Minas as comunidades criaram uma melhor: “empodemento”, isto é, “Quer dizer que nós pode? Nós pode!” E, se todos entenderam, a concordância resolvemos depois. Produzir “empodementos” passou a ser um ponto fundamental do nosso trabalho e um dos objetivos essenciais de qualquer plataforma de transformação social e desenvolvimento sustentável.
11 – Quem é carente neste país? – Carentes somos todos nós. Carentes de ética dos nossos politicos, governamentes e juízes. Carentes de parlamentares comprometidos com o bem publico. Carentes de lisura e honestidade entre nossos empresários. Carentes de escolas públicas e serviços públicos dignos e para todos. Enfim, carente sou eu: meu time não ganha um título nacional há 40 anos! (rsrsrsrs).
Se queremos, de fato, desenvolvimento sustentado, o caminho é aprender o “lado cheio do copo”, o que só uma leitura da diversidade cultural de forma densa, profunda e ao mesmo tempo microscópica, nos permite.
Todos nós, sem exceção, somos carentes. Portanto, usar indicadores de carência não nos permite construir desenvolvimento sustentável, pois eles são excludentes, discriminatórios e de pouca valia!
12 O CPCD vem, desde 1984, acumulando um acervo de tecnologias populares, de baixo custo e de fácil construção, adaptadas e apropriadas, adequadas às necessidades locais – familiares e comunitárias – em meios rurais e periféricos urbanos, através de várias “fabriquetas”. Todas elas partiram do que denominamos a “pedagogia do sabão”. Já são mais de 1.700 tecnologias catalogadas e replicadas. Um acervo que não se esgota!
13 A Carta da Terra é, em minha opinião, o mais importante documento e consenso produzido pela Humanidade no século XX. São 16 os princípios que norteiam a nossa vida e permanência em nossa morada, o “Ethos”, a Terra, de maneira sustentavel.
Todas as escolas – do prézinho ao pósdoctor – deveriam construir seus currículos educacionais, a partir dos princípios da Carta da Terra!
14 Para entender melhor a diferença entre “preço” e “valor”, é simples. Leite materno tem valor. Leite em pó tem preço. A vida das pessoas medida em “PIB” tem preço. A vida das pessoas medida em “Sustentabilidade” tem que ter valor!
15 No final deste texto apresentamos, como sugestão para os membros da Desconferência Cultura e Sustentabilidade Rio + 20, e sob forma de uma equação, uma plataforma de transformação social e construção de “cidade sustentável”, as Necessidades Humanas Fundamentais, de acordo com Manfred Max-Neef, com quem tive o privilégio e a honra de trabalhar, na década de 70, em Tiradentes, MG.
16 Ao final deste texto, apresentamos além as duas mandalas, Cultura e Cidade Sustentável. E como exercício de arquitetura e designer propomos para os leitores e participantes da “Desconferência Cultura e Sustentabilidade,, construer, coletivamente uma terceira mandala que engloba todas as sinergias. Este deve ser é um exercício de construção de futuro, possível e para todos.
Sobre o autor: Tião Rocha
Meu nome é Tião Rocha. Sebastião o meu apelido. Ninguém de chama por apelido.
Sou antropólogo (por formação acadêmica), educador (por opção política), folclorista (por necessidade), mineiro (por sorte) e atleticano (por sina).
Idealizador e diretor-presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento – CPCD, uma ONG criada em 1984 como a finalidade de ser uma instituição de aprendizagem.
É o que somos e fazemos, há 28 anos: aprender!
Muito enriquecedor. Adorei. Mas digo que esta discussão deve tomar maior proporção entre os artistas. Axé.
ResponderExcluirL'Omi.