sábado, janeiro 14, 2012
"Tudo o que sei é que eu não sou marxista". Filósofo mais do que agitador, cientista mais do que ativista, amante da democracia. Eis quem realmente era o pai do Manifesto do Partido Comunista.
Palavra de quem está arquivando a sua imensa obra ainda inédita: 114 volumes, o último dos quais será publicado em 2020. Em tempo, talvez, para entender em que mundo viveremos, como demonstra um trecho jamais lido do Capital, que parece ter sido escrito hoje.
A reportagem é de Andrea Tarquini, publicada no jornal La Repubblica, 08-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agitador, revolucionário, profeta inflexível da luta de classes. Foi assim que ele permaneceu na memória do mundo. Mas não: ele foi acima de tudo teórico e cientista, politólogo e pensador crítico sempre curioso, muito atento até às ciências naturais e às novas tecnologias. Acreditava na democracia e na liberdade de expressão muito mais do que se pensa, considerava-as irrenunciáveis. E ele tinha previsto a seu modo a crise contemporânea do capitalismo atual, muito mais do que as ditaduras totalitárias real-socialistas transmitiram.
Ele surge do passado como um modernonew-labourista, um progressista alemão ou um liberal norte-americano, dos seus escritos de milhares de páginas amareladas, mas desempoeiradas cuidadosamente em um belo edifício neoclássico aqui de Berlim, no número 22/23 da Jaegerstrasse.
Aqui na esplêndida Mitte, a um passo da Gendarmenmarkt, a praça das cerimônias prussianas e do Kaiser, talvez a mais bela da capital. Estamos no quarto andar da Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, a Academia de Ciências que revê a sua obra e, um volume depois do outro, prepara a sua publicação completa: 114 tomos de hoje até 2020, e sabe-se lá como o mundo será então.
"Certamente, ele o tinha estudado e previsto muito melhor de como nos foi dito pelos poderes que ousaram post-mortem", explica o doutor Gerald Hubmann, responsável, ao lado do professor Manfred Neuhaus, do grande trabalho.
Mas, enfim, de quem estamos falando? De Karl Marx, justamente ele. Aqui, os seus escritos, livros, anotações, cartas são estudados, relidos de modo crítico e publicados passo a passo. E ele, "o velho barbudo" – como o chamaram, afetuosa e reverentemente, muitas gerações de militantes de esquerda –, juntamente com Friedrich Engels, volta a ser atual sob uma outra luz.
É um mergulho na história, o da Jaegerstrasse 22/23. Um mergulho sereno na ducha fria e inquietante da crise do mundo global. Os volumes, reeditados em versão crítica e científica, um depois do outro, se empilham nas salas dos acadêmicos. Mega – "grande" em grego antigo – é o nome do projeto das obras completas de Marx e Engels, revista de modo crítico. Mega, em alemão, é uma sigla: Marx-Engels GesamtAusgabe. Remexendo nas cartas consumidas pelo tempo, descobrem-se coisas que os contemporâneos de Marx queriam ignorar, e que o marxismo-leninismo oficial preferiu censurar.
As Teses sobre Feuerbach, explica Hubmann, não fizeram parte, no início, de A ideologia alemã. Foram inseridas apenas depois, e o todo, segundo Marx, era apenas uma coleção de apontamentos "destinados para os ratos". Apontamentos de agitação política entregues aos manuscritos seus da época, todos à pena com correções e rasuras, os desenhos de rostos muitas vezes femininos, talvez esboçados por Engels ao lado. Slogans políticos transformados em ortodoxia na URSS.
Em suma: a teoria segundo a qual a existência material determina a consciência, base do materialismo histórico, explica Hubmann, era uma ideia em que Marx não acreditava. "Olhe aqui", diz ele, mostrando um volume reeditado, "Marx disse: 'Tudo o que eu sei é que não sou um marxista'".
"Um livro depois do outro", explica Hubmann, "nós, curadores do Mega, descobrimos um outro Marx. Não um 'cachorro morto', não um ideólogo do passado, mas sim um politólogo e cientista atual. Um homem que continuou pesquisando com curiosidade até a velhice e soube ver e prever as raízes da crise de hoje. Estudou, nos seus últimos anos, a evolução do capitalismo, de capitalismo industrial a sistema cada vez mais baseado no crédito e nas finanças e, portanto, exposto às suas oscilações e às suas incertezas", a crises ingovernáveis em detrimento de todos.
A reviravolta, a sua fase depois do Capital, começou com o estudo da economia norte-americana: os grandes espaços, a exigência de construir às pressas ferrovias e outras infraestruturas, o crescente apetite por matérias-primas, o boom da agricultura, explicam os acadêmicos, impuseram a crescente dependência da economia real ao crédito: era necessário cada vez mais dinheiro.
Mega II/13: eis as análises do Marx idoso sobre os novos processos de circulação do capital, sobre o seu desenvolvimento turbinado como sistema cada vez mais financeiro. Parece ler páginas sobre a crise dos nossos dias, mas, ao contrário, são tão velhas quanto um século e meio.
Foi um acaso, um acidente da história que o projeto Mega tenha podido ver a luz do dia. Obras, correspondências e apontamentos de Marx e Engels estavam ao alcance das mãos, no arquivo do SPD [Partido Social-Democrata alemão]. Depois da Revolução Bolchevique, nasceu um volumoso trabalho comum de cientistas social-democratas alemães e do PCUS [Partido Comunista da União Soviética] para organizá-los.
Parte do material foi levado para Moscou, outra parte permaneceu na vibrante Berlim da frágil República de Weimar. Foram as raízes da obra completa, mas os dramas daqueles anos a secaram. A pesquisa daqueles cientistas e filósofos também caiu muito rapidamente sob os olhos desconfiados da NKVD, a polícia secreta de Stalin. O ditador, relata Hubmann, não gostou de descobrir certas páginas críticas, certas notas sobre a exigência da liberdade de expressão e do livre debate entre forças políticas e sociais. Menos ainda lhe agradou descobrir que Marx e Engels tinham escrito muito mais do que Lenin e não teorizavam um totalitarismo, muito menos os gulag.
Com a brutal reviravolta autoritária na URSS, os cientistas marxistas acabaram mal. Começando pelo seu líder, David Ryazanov, que foi executado por traição em 1938, pouco antes do pacto Hitler-Stalin. Outros acabaram vigiados e só a grande fama os salvou de um pelotão de fuzilamento. Foi o caso de György Lukács, o pai húngaro do marxismo crítico.
Mas se Moscou chorava, Berlim não sorria. Veio 1933, a democracia de Weimar foi derrubada por Hitler. Os arquivos do SPD se salvaram por acaso: os social-democratas, desafiando a Gestapo, os levaram a amigos acadêmicos holandeses. "Quem sabe por que, mas, anos mais tarde – narra Hubmann –, na Holanda ocupada, a Gestapo e a polícia colaboracionista jamais pensaram em vasculhar os porões da academia de Amsterdã, jamais descobriram o que de bom grado destruiriam".
Veio 1945, a derrota do Eixo e a Guerra Fria com a Alemanha dividida. A URSS e a República Democrática da Alemanha (RDA) retomaram o trabalho de edição completa depois da morte de Stalin, mas Brezhnev o impediu: muitos manuscritos críticos, muitas ideias perigosas de convite à dúvida.
O trabalho ficou congelado até o 1989 da queda do Muro de Berlim. "E, embora possa parecer estranho", observam os professores da Jaegerstrasse, "se trabalhamos livremente e com rigor científico no Mega, também devemos isso a Helmut Kohl, certamente insuspeito de simpatias marxistas. O chanceler da reunificação, que amava história, decidiu que, talvez ocultamente, a pesquisa sobre essas toneladas de manuscritos que a RDA havia trancado no porão deveria ser retomada na Alemanha unificada".
Passaram-se mais de 20 anos desde aquela enésima reviravolta em que os manuscritos amarelados dos dois barbudos conseguiram sobreviver. Agora, o trabalho continua, dividido entre Berlim, Amsterdã e Moscou. Com o crescente interesse dos preparadíssimos cientistas oficiais chineses, que talvez procuram neles por novas ideias para a futura primeira potência mundial. Eles também descobrem um outro Marx. O homem que, perseguido por quase toda a Europa, ganhava a vida como correspondente do New York Daily Tribune.
Revejamos essas páginas: ele narrava como um grande enviado os abalos políticos e sociais ou as crises econômicas da Europa de então, até mesmo os primeiros movimentos operários na Itália ou na Espanha. Não havia as comunicações modernas: Marx e Engels enviavam os artigos para Nova York por navio, tinham que escrevê-los pensando para que não envelhecessem. Jenny Marx, a amada esposa, mantinha a contabilidade de cada expedição. Ela também começou a conservar os mais curiosos e incríveis escritos do marido ancião. Karl tinha renunciado à política, anotava a sua confiança no livre debate e no confronto de ideias e de forças políticas. E começou a estudar as ciências: eis os apontamentos e rabiscos perfeitos sobre a geologia, sobre a física, sobre os primeiros passos da ciência nuclear.
E eis, por fim mas não por último, a descoberta mais fascinante, talvez. Marx e Engels, na Europa do capitalismo sem Internet nem jatinhos, criaram uma rede de troca de correspondência internacional. Com líderes operários, com políticos, com cientistas, pessoas de todas as correntes de pensamento ou de tendência: a seu modo, dizem satisfeitos os acadêmicos da Jaegerstrasse, essa foi a primeira rede social. Funcionou durante anos.
Seja bem-vindo de volta, querido velho Marx, e desculpe-nos: muitos extremismos opostos do século XX tinham te transmitido mal. Vemo-nos em 2020. Talvez nos serviremos de ti quando sabe-se lá que rosto o capitalismo terá.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário