Brasília – Um dos maiores especialistas
em leitura do mundo, o francês Roger Chartier destaca que o hábito de ler está
muito além dos livros impressos e defende que os governos têm papel importante
na promoção de uma sociedade mais leitora.
O historiador esteve no Brasil para
participar do 2º Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários,
realizado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Em entrevista à
Agência Brasil, o professor e historiador avaliou que os meios
digitais ampliam as possibilidades de leitura, mas ressaltou que parte da
sociedade ainda está excluída dessa realidade. “O analfabetismo pode ser o
radical, o funcional ou o digital”, disse.
Agência Brasil: Uma
pesquisa divulgada recentemente indicou que o brasileiro lê em média quatro
livros por ano (a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada pelo
Instituto Pró-Livro em abril). Podemos considerar essa quantidade grande ou
pequena em relação a outros países?
Roger Chartier: Em
primeiro lugar, me parece que o ato de ler não se trata necessariamente de ler
livros. Essas pesquisas que peguntam às pessoas se elas leem livros estão sempre
ignorando que a leitura é muito mais do que ler livros. Basta ver em todos os
comportamentos da sociedade que a leitura é uma prática fundamental e
disseminada. Isso inclui a leitura dos livros, mas muita gente diz que não lê
livros e de fato está lendo objetos impressos que poderiam ser considerados
[jornais, revistas, revistas em quadrinhos, entre outras publicações]. Não
devemos ser pessimistas, o que se deve pensar é que a prática da leitura é mais
frequente, importante e necessária do que poderia indicar uma pesquisa sobre o
número de livros lidos.
ABr: Hoje a leitura
está em diferentes plataformas?
Chartier: Absolutamente,
quando há a entrada no mundo digital abre-se uma possibilidade de leitura mais
importante que antes. Não posso comparar imediatamente, mas nos últimos anos
houve um recuo do número de livros lidos, mas não necessariamente porque as
pessoas estão lendo pouco. É mais uma transformação das práticas culturais. É
gente que tinha o costume de comprar e ler muitos livros e agora talvez gaste o
mesmo dinheiro com outras formas de diversão.
ABr: A mesma pesquisa
que trouxe a média de livro lidos pelos brasileiros aponta que a população
prefere outras atividade à leitura, como ver televisão ou acessar a
internet.
Chartier: Isso não seria próprio do brasileiro.
Penso que em qualquer sociedade do mundo [a pesquisa] teria o mesmo resultado.
Talvez com porcentagens diferentes. Uma pesquisa francesa do Ministério da
Cultura mostrou que houve uma redistribuição dos gastos culturais para o teatro,
o turismo, a viagem e o próprio meio digital.
ABr: Na sua avaliação,
essa evolução tecnológica da leitura do impresso para os meios digitais tem o
papel de ampliar ou reduzir o número de leitores?
Chartier:
Representa uma possibilidade de leitura mais forte do que antes.
Quantas vezes nós somos obrigados a preencher formulários para comprar algo,
ler e-mails. Tudo isso está num mundo digital que é construído pela
leitura e a escrita. Mas também há fronteiras, não se pode pensar que cada um
tem um acesso imediato [ao meio digital]. É totalmente um mundo que impõe mais
leitura e escrita. Por outro lado, é um mundo onde a leitura tradicional dos
textos que são considerados livros, de ver uma obra que tem uma coerência, uma
singularidade, aqui [nos meios digitais] se confronta com uma prática de leitura
que é mais descontínua. A percepção da obra intelectual ou estética no mundo
digital é um processo muito mais complicado porque há fragmentos e trechos de
textos aparecendo na tela.
ABr: Na sua opinião, a
responsabilidade de promover o hábito da leitura em uma sociedade é da
escola?
Chartier: Os sociólogos mostram que, evidentemente,
a escola pode corrigir desigualdades que nascem na sociedade mesmo [para o
acesso à leitura]. Mas ao mesmo tempo a escola reflete as desigualdades de uma
sociedade. Então me parece que, também, é um desafio fundamental que as crianças
possam ter incorporados instrumentos de relação com a cultura escrita e que essa
desigualdade social deveria ser considerada e corrigida pela escola que
normalmente pode dar aos que estão desprovidos os instrumento de conhecimento ou
de compreensão da cultura escrita. É uma relação complexa entre a escola e o
mundo social. E é claro que a escola não pode fazer tudo.
ABr: Esse é um papel
também dos governos?
Chartier: Os governos têm um papel
múltiplo. Ele pode ajudar por meio de campanhas de incentivo à leitura, de
recursos às famílias mais desprovidas de capital cultural e pode ajudar pela
atenção ao sistema escolar. São três maneira de interação que me parecem
fundamentais.
ABr: No Brasil ainda
temos quase 14 milhões de analfabetos e boa parte da população tem pouco domínio
da leitura e escrita – são as pessoas consideradas analfabetas funcionais. Isso
não é um entrave ao estímulo da leitura?
Chartier: É preciso
diferenciar o analfabetismo radical, que é quando a pessoa está realmente fora
da possibilidade de ler e escrever da outra forma que seria uma dificuldade para
uma leitura. Há ainda uma outra forma de analfabetismo que seria da
historialidade no mundo digital, uma nova fronteira entre os que estão dentro
desse mundo e outros que, por razões econômicas e culturais, ficam de fora. O
conceito de analfabetismo pode ser o radical, o funcional ou o digital. Cada um
precisa de uma forma de aculturação, de pedagogia e didática diferente, mas os
três também são tarefas importantes não só para os governos, mas para a
sociedade inteira.
ABr: Na sua avaliação, a exclusão dos meios digitais poderia
ser considerada uma nova forma de analfabetismo?
Chartier:
Me parece que isso é importante e há uma ilusão que vem de quem escreve sobre o
mundo digital, porque já está nele e pensa que a sociedade inteira está
digitalizada, mas não é o caso. Evidente há muitos obstáculos e fronteiras para
entrar nesse mundo. Começando pela própria compra dos instrumentos e terminando
com a capacidade de fazer um bom uso dessas novas técnicas. Essa é uma outra
tarefa dada à escola de permitir a aprendizagem dessa nova técnica, mas não
somente de aprender a ler e escrever, mas como fazer isso na tela do computador.
Com informações da Agência Brasil
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